segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Textos...

A ciência como bifurcação: uma homenagem a Ilya Prigogine*

Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 23 • abril 2004 • quadrimestral
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RESUMO
A Universidade Livre de Bruxelas e o Instituto de Química, em particular, perderam um professor que honrava a instituição por suas pesquisas nas fronteiras da química, da física e da filosofia. A comunidade científica mundial conta agora com a ausência de um dos cientistas mais brilhantes do século XX.
ABSTRACT
This paper pays tribute to the well-known influential thinker Ilya Prigogine.
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS)
– Ilya Prigogine
– Filosofia (Philosophy)
– Ciência (Science)
Maria da Conceição de Almeida
UFRN
DEDICO ESTE TEXTO a Vinciane Callebaut, presença sutil em momentos igualmente sutis de minha vida acadêmica, e a Ariel, meu pequeno “cientista”.
“Gostaríamos de fazer compartilhar não uma ‘visão de mundo’ mas uma visão de ciência. Da mesma maneira que a arte e a filosofia, a ciência é antes de tudo experimentação criadora de questões e significações.” Ilya Prigogine e Isabelle Stengers
O céu de Bruxelas, conhecido por ser bucolicamente cinzento durante grande parte do ano, deve ter expressado uma atmosfera de tristeza na quarta-feira 28 de maio passado. Morria Ilya Prigogine. Para os físicos, ele era o “poeta da termodinâmica”; para Edmond Blattchen, “a primeira personalidade belga de renome internacional e um dos maiores sábios desde Albert Einstein”.
A Universidade Livre de Bruxelas e o Instituto de Química, em particular, perderam um professor que honrava a instituição por suas pesquisas nas fronteiras da química, da física e da filosofia. A comunidade científica mundial conta agora com a ausência de um dos cientistas mais brilhantes do século XX.
Quem foi Ilya Prigogine
Filho de judeus, nasceu em Moscou, em 1917, ano da revolução russa. A família Prigogine transferiu-se para Bruxelas em 1929. O interesse pela música, literatura, arqueologia, psicologia, direito e história tece a formação humanista de um cientista que centra suas pesquisas na química orgânica
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e depois na físico-química. Avançando nas investigações de Théophile de Donder, seu mestre e pai da Escola de Termodinâmica de Bruxelas, Prigogine se interessa pela “dinâmica dos sistemas longe do equilíbrio”; trata dos fenômenos irreversíveis e das estruturas dissipativas. Descobre que a ordem pode nascer da desordem; que o tempo é irreversível; que a “flecha do tempo” indica probabilidades e nunca certezas, porque a evolução do universo abriga desvios, flutuações, bifurcações e acontecimentos criadores de novas ordens. Em 1977, Ilya Prigogine recebe o Prêmio Nobel de Química.
No centro de sua teoria sobre o tempo, espaço e matéria estão interlocutores como Jacques Monod, Schrödinger, Henri Bérgson, Isaac Newton e Albert Einstein, em relação aos quais Prigogine se afasta, em parte, ou se opõe radicalmente. Aliança e Reconciliação são palavras centrais na sua obra. Para ele, vivemos um tempo de reconciliação do homem com a natureza e da ciência com a filosofia. Ele próprio vivenciou um diálogo fecundo com a filosofia. A parceria intelectual com Isabelle Stengers, química e filósofa da ciência, faz da obra de Prigogine um exemplo de ciência transdisciplinar, tecida em conjunto, complexa.
Marcado por uma ética do reconhecimento e da cumplicidade intelectual, abre mão das honras que o distinguem como gênio individual. Credita suas descobertas aos trabalhos em equipe. Especialmente com o colega e amigo Paul Glansdorff partilha a descoberta das “estruturas dissipativas”, um conceito revolucionário no domínio da física, no fim dos anos 60 do século passado. Nos prefácios, apresentações de livros e entrevistas, faz questão de assinalar que “foi ao longo dos anos” e “graças a meus colaboradores” que conseguiu chegar a tal resultado, a tal concepção de universo, a tal representação matemática. Não é sem razão que entre as obras de maior circulação do poeta da termodinâmica estão “Entre o tempo e a eternidade” e “A nova aliança”, escritas em parceria com Isabelle Stengers.
No mesmo diapasão intelectual de Edgar Morin, com quem partilhou da tarefa de uma reorganização fundamental do conhecimento rumo às ciências da complexidade, Ilya Prigogine aposta na “religação dos saberes” proposta por Morin. “A ciência de hoje”, diz Prigogine, “não pode mais se dar ao direito de negar a pertinência e o interesse de outros pontos de vista e, em particular, de recusar compreender os das ciências humanas, da filosofia e da arte.” Do interior dessa “nova aliança”, o ousado cientista russo-belga problematiza a ética da responsabilidade na ciência e questiona a separação entre ciências humanas, ciências da vida e ciências da natureza. Pergunta: “Se os cientistas das ciências físicas ou biológicas são incapazes de ousar conceber que a ciência física possa ser também uma ciência social, podem eles ter os instrumentos para pensar os problemas de sua responsabilidade?”.
O lugar da liberdade
O futuro não está determinado. “O futuro não é dado.” Imerso na incerteza, o futuro está aberto. O universo está em construção. A história humana, acontecimento particular da história do universo, acompanha essa mesma dinâmica de inacabamento, desvios, incertezas, flutuações. Bifurcações, diz Ilya Prigogine: “Essa mistura de determinismo e de imprevisibilidade. A criação do universo é antes de tudo uma criação de possibilidades, as quais algumas se realizam, outras não”. Nisso, Prigogine está de acordo com Henri Bérgson, para quem “a realidade é apenas um acaso particular do possível”. Por isso, falar de realidades virtuais é falar de pré-realidades que fazemos acontecer em parte.
O possível está sempre em potência, em suspensão, em estado de flutuação. “Partículas podem se separar, forjar estrelas, formar planetas e finalmente engendrar a vida. Eu diria que a criação do mundo é a criação da liberdade. A liberdade, porque essas moléculas reais podem ir em todos os sentidos, 79 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 23 • abril 2004 • quadrimestral
criar estrutura, especialmente estruturas dissipativas, logo, a vida e o homem, as culturas humanas.” O vazio é, nesse sentido, um mundo em potência. Aparecem claras, aqui, as bases para a construção da noção de emergência, tão cara à compreensão do que seja complexidade.
A emergência é a expressão de uma propriedade nova a partir de elementos preexistentes que, no entanto, de forma alguma manifestavam, isoladamente, tal propriedade. O astrofísico Hubert Reeves explica de forma clara o que é emergência usando o exemplo da água. “A molécula de água é um excelente solvente, o que não são, de forma alguma, o hidrogênio e o oxigênio que a compõem.”
Os conceitos de bifurcação (o que é da ordem do acontecimento novo) e o de flutuação (o que diz respeito ao não previsível que está em potencial) constroem as bases epistemológicas do pensamento prigoginiano e se constituem em ferramentas para a emergência das ciências da complexidade. Observada a espécie humana, a história da sociedade e da cultura é certamente aí que se configura a relação incerta, é verdade, mas ao mesmo tempo mais instigante entre o que está em potencial (e não é previsível) e o domínio da liberdade exploratória, operativa e intencional. Se as partículas podem se separar e forjar estrelas, formar planetas e engendrar a vida, o que potencialmente não pode a espécie humana, esse amálgama de “pó de estrelas” dotado de uma complexidade maior, de uma imprevisibilidade estonteante e da liberdade dotada de consciência?
Se há liberdade entre as moléculas, porque elas podem ir em todos os sentidos, o que não dizer da liberdade nos humanos, eles próprios uma Caixa de Pandora que abriga a diversidade das experiências do cosmo, da matéria, da vida, da história cultural e também da experiência da linguagem, do inconsciente, das barbáries e vicissitudes de seu nomadismo sobre o planeta Terra? Se não viemos do mesmo, mas do outro, e na cadeia dos acasos, flutuações e bifurcações a vida emergiu da não-vida, é certo que a liberdade da qual fala Prigogine é a mesma e outra, se considerarmos o acaso da criação do universo e a emergência da história da nossa espécie. Isso porque somos um ponto de bifurcação na história da vida, uma construção que se tornou possível num turbilhão de possibilidades.
“Há uma história cosmológica, no interior da qual há uma história da matéria, no interior da qual há, finalmente, nossa própria história.” Desse lugar (o interior do interior) o homem gesta sua própria vida acometido de todas as incertezas, ordens, desordens, acasos e flutuações que igualmente acometeram o tempo que precedeu o aparecimento da espécie e a história cultural por nós herdada.
Longe da causalidade linear e em oposição ao determinismo de Newton, as idéias de Prigogine discutem as condições de possibilidades, apostam na intervenção criativa do sujeito no mundo; incitam a decisão e a vontade dos humanos. Já que nos distinguimos das estrelas por essas propriedades tornadas conscientes, sobre nós recai o peso de assumir “a escolha, a liberdade e a responsabilidade” diante da trajetória incerta das sociedades humanas. “A condição humana reside em abrir-se à possibilidade da escolha. Pensar o incerto é pensar a liberdade”, diz Prigogine. Contrariando as teorias que apregoam o fim da história, ele a concebe como uma sucessão de bifurcações. Ele se diz otimista e aposta no projeto humano. “Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva ao futuro. A tarefa é encontrar a estreita via entre a globalização e a preservação do pluralismo cultural, entre a violência e a política, e entre a cultura da guerra e a da razão.”
Um encontro inesquecível
Em julho de 2001, após ter participado de uma cerimônia, em Paris, patrocinada pela UNESCO para homenagear Edgar Morin pelos seus oitenta anos, fui a Bruxelas para 80 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 23 • abril 2004 • quadrimestral
rever amigos. Levava comigo alguns exemplares do livro Ciência, Razão e Paixão, de Ilya Prigogine, recém-publicado no Brasil e organizado por mim e Edgard de Assis Carvalho. Minha intenção era apenas fazer o livro chegar às mãos do autor, deixar em algum lugar para que isso se tornasse possível. Vinciane Callebaut, minha “filha” belga, ligou para a residência do professor para falar sobre o livro e perguntar onde poderíamos deixá-lo. Ilya Prigogine sugere um encontro e marca no Instituto de Química da Universidade Livre de Bruxelas.
Acompanhada por Vinciane, que gentilmente traduziu grande parte de minha conversa com Prigogine, cheguei um pouco antes da hora marcada no Instituto de Química. Na ampla sala de trabalho, pude sentir a atmosfera de uma ciência ancorada numa nova aliança, num diálogo do homem com a natureza e na simetria respeitosa entre várias representações do mundo. O espaço de circulação da sala, o ambiente acolhedor, os objetos de arte das culturas pré-colombianas, as estantes cheias de livros, tudo estava em simbiose, tudo lembrava um acontecimento novo no âmbito da velha ciência dura demais, pesada em demasia, fragmentada, esquizofrênica.
Logo na entrada da sala, do lado direito e num lugar imediatamente visível, uma fotografia: Ilya Prigogine e Isabelle Stengers. Olhando aquela imagem, pude compreender o sentido da parceria intelectual tão destacada na obra do Prêmio Nobel de Química de 1977. Refleti sobre a natureza coletiva do fazer ciência, sobre a partilha da autoria, sobre a necessária humildade do intelectual. Cheguei à conclusão óbvia de que o gênio sozinho é uma ilusão.
Não sei quanto tempo passei naquela sala antes da chegada do dono da casa. Ele chegou leve, sem fazer barulho. Caminhava apoiado em uma bengala, expressava elegância, um sorriso discreto, um rosto sereníssimo. Tive um impacto ao vê-lo, porque esperava um homem enorme, do tamanho de suas teorias e ali estava ele, um pouco mais alto do que eu. Aprendi naquela tarde uma segunda lição: os livros são veículos de criação de imagens que nem sempre permitem antecipar o perfil de seus criadores. No caso de Ilya Prigogine, por que imaginar um homem muito alto e muito forte?
Prigogine recebeu os livros (dois volumes do dele e um meu que acabava de sair pela mesma editora). Elogiou a qualidade gráfica e estética da edição (Editora da EDUEPA - Belém - PA). Perguntou do que tratava meu livro e o porquê do título “Complexidade e Cosmologias da Tradição”. Disse que estava curioso e pediria a seu filho, que entendia português, para lê-lo para ele. Deu-nos o seu livro “Ilya Prigogine: Do ser e do devir”. Sobre o Brasil, perguntou sobre as universidades, a antropologia e falou de maneira visivelmente afetiva do seu amigo brasileiro, o físico Mário Schemberg, falecido em 1990.
Uma única vez vi Ilya Prigogine. Mas a intensidade daquelas duas horas operou mais um ponto de bifurcação em minha vida acadêmica e pessoal. Enuncio assim uma terceira lição: compreendi que a ciência pode e deve ser exercitada com inteireza, simplicidade e generosidade.
Quando acabei de escrever essa última parte do texto, pude compreender que mais do que a intenção de registrar meu encontro com Ilya Prigogine estava eu confirmando a importância da vivência dos fenômenos e das situações que nos são dados.
Prestar atenção, observar com cuidado e intensidade o conjunto, o entorno e a forma como os experimentamos em nosso interior, pode se tornar uma atitude precatória contra a superficialidade de nossos atos - sejam eles científicos, políticos, lúdicos, trágicos ou amorosos. Aqui, e nesse aspecto, me rendo à fenomenologia de Merleau-Ponty.
Bifurcações pós-prigoginianas
O que têm a ver com as ciências sociais as idéias de Ilya Prigogine?
Para quem o enxerga restrito à sua especialidade de químico e tem na “delimitação do objeto” o critério definidor da 81 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 23 • abril 2004 • quadrimestral
lida acadêmica, certamente desautorizará as reflexões desse químico sobre cultura, política e ética, entendendo que, como reserva demarcada do saber, essa é a nossa parte, nosso “objeto”, nosso métier, a especialidade das ciências sociais.
Entretanto, para quem está, como intelectual, a serviço de um projeto de ciência capaz de instaurar uma “nova aliança” entre cultura científica e cultura humanística, enxergará nas idéias do Prêmio Nobel de Química um passo firme nessa direção. A reflexão sobre a ética do trabalho científico, a função política da ciência e “a escolha, a liberdade e a responsabilidade” do intelectual são explícitas, criativas e corajosas na obra de Ilya Prigogine.
Como cientistas sociais, podemos sim realimentar nossas reservas cognitivas sobre esses temas cruciais para nós, e de resto, conforme diz Prigogine, para todas as ciências, humanas todas elas.
Ao invés de me alongar sobre a importância da leitura da obra de Prigogine para todos nós, exponho o que poderia de forma metafórica ser entendido como dois pontos de bifurcação necessários na construção do conhecimento nas ciências sociais.
O primeiro ponto de bifurcação do qual trato brevemente diz respeito ao trabalho em equipe, à construção coletiva do conhecimento. É necessário ter consciência de que tudo que produzimos (da idéia mais simples até a construção da tese mais brilhante) o fazemos a partir de um débito enorme com outras idéias e outras pesquisas que nos antecederam no tempo ou com as quais convivemos no presente. Por isso, faz sentido Prigogine atribuir o seu reconhecimento como Nobel de Química ao “trabalho em equipe” e “ao longo do tempo”. É importante aprender essa lição.
A consciência de que o avanço individual na produção do conhecimento está ligado a condições e possibilidades coletivas, certamente ameniza (ou desautoriza?) o discurso de autoridade e a arrogância do intelectual. A consciência de que somos um elo da corrente; de que bebemos no poço comum dos saberes à nossa volta; e de que também devemos disponibilizar e socializar o conhecimento que transpiramos de forma singular, faz toda a diferença se tivermos como meta uma “democracia cognitiva”. Nisso reside a distinção entre um conhecimento exotérico, isto é, de domínio ampliado e público, e um conhecimento esotérico, quer dizer, hermético, fechado, reservado aos íntimos, à comunidade de iguais, aos iniciados.
O que se espera da ciência (aliás, essa é a sua condição sine qua non) é que ela seja exotérica, nunca esotérica. Por conseguinte, a abertura, o diálogo e a partilha devem promover juntos a cópula da cumplicidade das idéias, nas idéias e pelas idéias. Mas isso, na condição de entender que a cumplicidade supõe unidade e harmonia no essencial, mas também recusa e dissintonia nas contingências, no periférico, no secundário.
Compreender que o gênio individual é uma ilusão e que somos, como intelectuais, parasitas das idéias dos outros, mas também parasitados por outros, reduz o peso da fictícia sabedoria oracular.
O segundo ponto de bifurcação chamo de Manifesto Contra a Tirania do Conceito. Para fazer valer a natureza coletiva das idéias, me torno parasita de Gaston Bachelard e Gilles Deleuze para construir os argumentos que exponho agora.
Comecemos por Gaston Bachelard, no livro “Poética do Espaço”. “Os conceitos são gavetas que servem para classificar os conhecimentos; os conceitos são formas de confecção que desindividualizam os conhecimentos vivos. Para cada conceito há uma gaveta no móvel das categorias. O conceito é um pensamento morto, já que ele é, por definição, pensamento classificado.” (op. cit. p. 88)
Os conceitos são ferramentas cognitivas, operadores do pensamento, instrumentos do trabalho intelectual, modelos abstratos que permitem ordenar e compreender o mundo fenomenal. Como sabemos, ferramentas, instrumentos e modelos são meios e nunca fins. Qualquer sacralização 82 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 23 • abril 2004 • quadrimestral
do conceito ou defesa conceitual concerne a uma atitude intelectual que amesquinha o pensamento, pois os meios não devem se sobrepor aos fins.
Os conceitos, como potencializadores da pesquisa científica, precisam ser lapidados, refeitos, ampliados e adequados ao objetivo de compreender o fenômeno do qual tratamos.
Os conceitos são construções humanas. Têm historicidade. Eles nascem, crescem e vivem por meio de nós. Mas também morrem quando chega a sua hora, quando não oferecem mais campo de luminosidade para a compreensão do que queremos conhecer. No livro “Conversações”, Gilles Deleuze fala da vida dos conceitos nos sistemas abertos de idéias. Assinala sua força crítica, política e de liberdade, desde que eles estejam ligados à imanência e à circunstância e nunca à essência.
“Todo mundo sabe que a filosofia se ocupa de conceitos. Um sistema é um conjunto de conceitos. Um sistema é aberto quando os conceitos são relacionados a circunstâncias e não a essências. Mas, por outro lado, os conceitos não são dados prontos, eles não preexistem: é preciso inventar, criar os conceitos, e nisso há tanta criação e invenção quanto na arte ou na ciência. Criar novos conceitos que tenham uma necessidade, sempre foi a tarefa da filosofia. É que, por outro lado, os conceitos não são generalidades à moda da época. Ao contrário, são singularidades que reagem sobre os fluxos de pensamento ordinários: pode-se muito bem pensar sem conceito, mas desde que haja conceitos há verdadeiramente filosofia...Um conceito é cheio de uma força crítica, política e de liberdade.” (1996, p. 45 e 46)
Dessa perspectiva, os conceitos não devem nos servir como âncoras, uma vez que a função da âncora é manter o barco parado. Eles se assemelham mais a remos que nos fazem mover nas águas dos saberes, pelas quais navegamos, e no mundo fenomênico. Ao contrário da âncora, os remos nos permitem avançar, percorrer e ultrapassar círculos, rodopiar, remover os obstáculos superficiais. Essa metáfora ajuda a pensar a natureza nômade dos conceitos.
Para Deleuze, o nomadismo é uma qualidade essencial para a filosofia. Pensar dentro do espaço da incerteza, também. “É preciso pensar em termos incertos, improváveis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou tentativas necessárias, não narcísicas, não edipianas - nenhuma bicha jamais poderá dizer com certeza ‘eu sou bicha’. O problema não é ser isto ou aquilo no homem, mas antes o de um devir inumano, de um devir universal animal: não se tornar um animal mas desfazer a organização humana do corpo, atravessar tal ou qual zona de intensidade do corpo, cada um descobrindo as suas próprias zonas e os grupos as populações e as espécies que o habitam.” (idem p. 21)
Nada contra os conceitos. Eles são nossas ferramentas de trabalho, mas é preciso mantê-los em seu lugar. Se abrirmos mão da tirania do conceito para nos acercarmos do valor operativamente aberto das noções, talvez aí encontremos os alimentos de sentido que permitem, agora sim, voltar para o conceito para abri-lo e deixá-lo respirar o oxigênio da história da realidade e do fenômeno do qual fala o conceito. Há “dois tipos de noções científicas, mesmo se concretamente elas se misturam. Há noções exatas por natureza, quantitativas, equacionais, e que não têm sentido senão por sua exatidão: estas, um filósofo ou um escritor só pode utilizá-las por metáfora, o que é muito ruim, porque elas pertencem à ciência exata.
Mas há também noções fundamentalmente inexatas e, no entanto, absolutamente rigorosas, das quais os cientistas não podem prescindir, e que pertencem ao mesmo tempo aos cientistas, aos filósofos, aos artistas. Trata-se de dar-lhes um rigor que não é diretamente científico, e quando um cientista chega a esse rigor, ele é também filósofo, ou 83 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 23 • abril 2004 • quadrimestral
artista” (idem, p. 42).
É bom lembrar que o mundo das teorias e dos conceitos é ao mesmo tempo produto do mundo vivido e produtor de realidades. Por isso mesmo é na relação entre o espaço da historicidade coletiva e da singularidade individual que faz sentido a produção da ciência. Além disso, os conceitos e as teorias excedem por vezes o vivido, ou se constituem em apenas um fragmento da vida. Eles são sempre mais, ou menos, que a vida e os fenômenos que pretendem explicar.
O compromisso do intelectual e do cientista-cidadão não é pois com a teoria nem com os conceitos, mas por meio deles, com uma sociedade mais justa, mais livre, mais feliz, mais leve, mais viva. Para nutrir as sementes de uma insatisfação fundamental e de uma ira criadora que politiza o pensamento, e fazer do conhecimento um meio de transformação e não um fim em si mesmo, é necessário ao mesmo tempo humildade e obstinação.
Entretanto, se é fundamental ser parcimonioso e humilde quando fazemos ciência, não é necessário nos acovardarmos nem abrir mão de nossas convicções por mais radicais que elas possam parecer. Podemos e devemos sair fora da linha, inventar novos caminhos, anunciar conhecimentos proibidos, discutir hipóteses não plausíveis, idéias inacabadas, impertinentes, ou ir no contrafluxo do estabelecido. Foi assim que se deram os avanços na ciência, que se anunciaram novas interpretações para os mesmos fenômenos.
Foi assim que fizeram Descartes, Galilleu, Copérnico, Comte, Marx, Beethoven, Newton, Einstein, Prigogine. É certo que aos contrafluxos criadores se opuseram, e se oporão sempre, as forças de resistência ao novo, ao que desestrutura a certeza anterior. Essas forças de resistência (os paradigmas) são importantes apesar de indesejadas por parte do cientista criador. São elas que completam o anel antropológico que se autofecunda pela inovação e conservação, responsáveis principais pela dinâmica e permanência das sociedades humanas.
Mas como acredito que é preciso advogar em favor do novo, uma vez que a resistência a ele já está dada e é da ordem da contingência, trago de volta Gilles Deleuze para nos lembrar que há um preço a pagar pela inovação na ciência: “No momento em que alguém dá um passo fora do que já foi pensado, quando se aventura para fora do reconhecível e do tranqüilizador, quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar torna-se, como diz Foucault, ‘um ato arriscado’, uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo. As objeções feitas a um pensador ou mesmo às questões que lhe colocam vêm sempre das margens, e são como bóias lançadas em sua direção, porém mais para confundi-lo e impedi-lo de avançar do que para ajudá-lo: as objeções vêm sempre dos medíocres e dos preguiçosos” (op. cit. p. 128).
Trata-se de uma escolha. Bifurcar ou permanecer na repetição. Bifurcar, para fecundar novos acontecimentos (interpretativos, teóricos ou práticos) ou permanecer no aconchego tranqüilizador da certeza e do estabelecido pelo “consenso”, pela cultura, pelas regras e metodologias científicas. Produzir bifurcações conceituais e interpretativas ou fortalecer a couraça dos conceitos que tanto nos têm ajudado a ver o mundo é um dos desafios com os quais temos que dialogar no cotidiano da construção da ciência. Esse desafio não é tão grande assim. Ele é o tamanho de cada um de nós e supõe a difícil, mas prazerosa, arte do exercício da liberdade. É oportuno lembrar que a ciência ainda é o espaço onde a liberdade é menos vigiada, uma vez que ela inicia sua fecundação no nicho do pensamento, “lugar” inacessível a qualquer controle.
Bifurcar e abrir-se à incerteza ou permanecer na repetição do que nos basta, porque reafirma nossas verdades: essa é uma questão inaugural da ciência em qualquer momento da sua história. Cabe ao intelectual fazer a sua escolha e a sua aposta. Qualquer que seja ela (bifurcação ou repetição) 84 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 23 • abril 2004 • quadrimestral
estaremos, ainda e sempre, no domínio da ciência como uma produção humana que abriga, simultaneamente, vida e morte, criação e permanência.
De qualquer forma, é do impulso da bifurcação que advém o fenômeno novo, a nova interpretação, a originalidade da pesquisa. E se para isso é necessário reafirmar a descontinuidade como a alavanca de novas cartografias do pensamento; se é preciso reconhecer que a ciência é a habilidade de lidar com o difícil, nada mais estaremos fazendo senão trazer de volta as reflexões de Gaston Bachelard. “Encarem a química difícil e reconhecerão que entraram num reino novo de racionalidade. Essa dificuldade da ciência contemporânea será um obstáculo à cultura ou representa um atrativo? Segundo acreditamos, ela é a própria condição do dinamismo psicológico da pesquisa. O trabalho científico exige precisamente que o pesquisador crie dificuldades. O essencial é que essas dificuldades sejam reais, que sejam eliminadas as falsas dificuldades, as dificuldades imaginárias.” (1977, p. 176)
Não estando no domínio do senso comum, o conhecimento científico opera uma mudança de rota do conhecimento humano. Podemos, dessa perspectiva, conceber a ciência como bifurcação .
Notas
* Palestra de abertura do I Seminário Doutoral do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, julho de 2003.
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
______. Epistemologia: trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
Ilya Prigogine: do ser e do devir. Entrevistas a Edmond Blattchen. São Paulo: UNESP/EDUEPA, 2002. (Coleção: Nomes de Deuses).
PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. Entre o tempo e a eternidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
_______. A nova aliança. Brasília: Editora da UnB, 1997.
PRIGOGINE, Ilya. Ciência, razão e paixão (Organização de Maria da Conceição de Almeida e Edgard de Assis Carvalho). Belém: EDUEPA, 2001.




3 comentários:

  1. Mediante a sociedade atual nos tornamos seres comuns, comuns ao ponto de deixarmos no interior e obscuro local inascecível de nossa mente, nossa razão crítica, e existencial. Perdemos a capacidade de pensamento. Em pleno século atual vemos o ser humano como o ser mais acomodado e moldado de todo o universo. O humano, o filósofo e o artista que sobrevive dentro de nos a duras penas, deve ter a capacidade, mesmo que oculta, de perceber que a algo mais além e mais profundo do que as supostas verdades e mentiras que nos são empurradas.
    Saber conhecer, dividir, questionar, inovar, criar, possibilitar, originalizar, eis algumas das características principais para crescermos. É preciso tudo isso, e muito mais, para quem sabe podermos chegar ao início de nossa autonomia indívidual. Ter dominío sobre si mesmo, e ser capaz de dividir conceitos, regras, morais, paradigmas e estar aberto a possibilidades maiores e inéditas nas próprias concepções.
    DUVIDAR, uma das maiores capacidades do ser, mais que é totalmente inutilizada. Procurar o novo mediante as dúvidas e incertezas é um fator essencial para o crescimento do indivíduo enquanto ser em sua plenitude. Devemos saber admitir que nada, absolutamente nada, é inquestionavel.

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  2. (gessica)Esse cientista inovou e desenvolveu ideias nao so pensando na fisica,mas que podem se aplicar em outros campos e ultilizando do mesmo artificio ultilizei-as como ponto de partida para elaboraçao da minha performace.Da mesma maneira que o cientista espoe sua opinioa de tem,futuro, tambem sera na criaçao da performace ,pois somos seres que estamos em contruçao, e o que pode ser "certo" para nos hoje,pode nao ser amanha.Ate a hora da performace nao se tera nada definido totalmente,e cada performace e unica pois nunca estaremos com o mesmo sentimento ou mesmo estado de outras vezes.Ao decorrer do processo de criaçao,surgirao varias ideias,possibilidades, que serao lapidadas,algumas se tornarao "realidade",outras nao passaram de possibilidades.Saber trabalhar com a ideias e essencial, pois temos liberdade de unir pedaços(particulas) de cada ideia(possibilidade)e formar o todo,o produto final e em uma performace, nao necessariamente eu presciso usar apenas uma linguagem,podemos explora-las de maneira que forme um "todo" que nao necessariamente seja apenas uma dança,teatro,canto,etc.

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  3. "[...]A criação do universo é antes de tudo uma criação de possibilidades, as quais algumas se realizam, outras não”." Esse trecho apresentado acima, chamou bastante a minha atenção. Na elaboração de qualquer tese (ou qualquer outra coisa cuja a qual necessite de uma explicação) se faz necessária a criação de uma hipótese que explicará tal fenômeno. Essa hipótese é uma possibilidade cuja a qual poderá ser real ou não. No campo das artes, devemos saber trabalhar com hipóteses que visem encontrar soluções para os inúmeros questionamentos que surgem enquanto elaboramos nosso trabalho, devemos dessa forma saber o porque escolhemos determinada liguagem e não outra, porque escolhemos aquele movimento e não outro, enfim uma infinidade de questões que povoam nossa mente durante o processo criativo. Quero enfatizar aqui outro trecho que me interessou bastante, a aproximação da ciência, das artes, da sociedade com nosso corpo. Nossa mente tende a afastar conceitos intelectuais do mundo real, ou seja, ela muitas vezes toma o que está escrito nos livros apenas como um monte de palavras organizadas. Palavras cujas quais não tem nenhuma aplicação prática, conceitos que as pessoas julgam não fazer parte do nosso corpo, do nosso mundo. Tomam tudo aquilo como algo imaginário. Por fim, é também muito interessante a aproximação entre as diferentes formas de saber. Afinal, todas as ciências divergem da filosofia. Tudo se origina com a pergunta "Por quê?" Essa pergunta aproxima intimamente toda forma de conhecimento e nos incita a ir cada vez mais longe e descobrir novas possibilidades de um determinado fato.

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