POR QUE DANÇAR?
O ensino de todas as artes nas escolas busca atender as novas necessidades da educação do século XXI: formar cidadãos de fato, indivíduos integrais e verdadeiramente humanos. Os adolescentes de hoje têm acesso a diversas linguagens e multimídias, acompanham a velocidade das informações e buscam novidades a cada momento. Contudo, suas relações, formas de expressão e realização são cada vez mais virtuais. Criam várias realidades para si, transformam-se em todos os seus heróis e heroínas, mas não têm a possibilidade de tornar isso um fato real. Eles estão cada vez mais mortificados corporalmente, porque não conhecem o próprio corpo e não vivenciam a sua realidade corporal. Dessa forma, não percebem as tantas possibilidades de movimento que possuem e, com isso, as diferentes possibilidades de ser.
É necessária a formação de um aluno crítico e pronto para transformar a sua realidade; pronto para se superar e superar as dificuldades que o mundo lhe apresenta. Mas o aluno só será diferente se conseguir se movimentar diferente, se conhecer suas possibilidades de vida e ação, seus limites e suas potencialidades de movimento. Ao nos movimentarmos cotidianamente, expressamos o que somos e o que pensamos, embora não tomemos consciência disso, porque nosso foco está no realizar a ação e não na forma e na razão de sua realização. O corpo é o que nos possibilita estar no mundo, é por meio dele que aparecemos, sentimos e mudamos a realidade. É necessário “transformar-se num ‘corpo-cidadão’, que seja individualizado; é preciso estar pronto para responder por sua vida e por suas escolhas pessoais” (BERTAZZO, 1996, p.32).
Pensando nisso, a Dança deve ser desenvolvida nas escolas em toda a sua amplitude: como criação ou fazer artístico; como contextualização ou estudo da História da Dança; como apreciação e como apresentação cênica. O objetivo é “colocar cada um em contato direto com o corpo e, a partir daí, abrir um canal para o auto-conhecimento, contribuindo para a formação da identidade pessoal e coletiva” (BERTAZZO, 1996 p.32), porque a dança também permite o contato com o outro. Com ela, o aluno pode se perceber e se conscientizar da maneira como está lidando com a diversidade e com concepções de mundo diferentes da sua. Através do processo criativo e do produto desse processo, o ser humano modifica-se a si mesmo e se transforma a partir da sua relação com o outro, das influências sociais, culturais e científicas. Dançar é uma atividade social ligada à origem do próprio homem e da sociedade. É uma linguagem artística peculiar, que possui seus signos e significantes no próprio corpo, em suas expressões sentimentais e corporais; em suas movimentações no espaço e em suas funções cênicas, sociais e religiosas. Sendo assim, não basta mais ensinar teoricamente, porque, em suas ações cotidianas, os alunos não irão concretizar a teoria, não irão ponderar, utilizando as teorias clássicas e a tradição. Vão sim escolher as soluções mais simples e imediatas, as estratégias mais conhecidas, para os problemas que se apresentam diante deles. Não aprenderam a lapidar a sua ação corporal, não desenvolveram a qualidade do seu movimento.
Para que o jovem tenha uma formação adequada, para que exteriorize as suas potencialidades e talentos, é necessário que ele conheça as diferentes linguagens, ou seja, é fundamental ter acesso à cultura, às ciências, às artes e a diferentes experiências. Assim, a dança, aprendida de forma consciente, crítica e contextualizada, será um instrumento indispensável para se formar cidadãos de verdade: com corpo e mente integrados; permitindo que cada um tenha controle de seus sentimentos, impulsos, sensações, da sua agressividade e dos seus desejos, contribuindo para uma educação que supere a violência, tão comum no universo adolescente, e construa a Cultura de paz.
(A dança deve ser entendida aqui como “arte do movimento”, em um sentido amplo e não se referindo a nenhuma técnica específica, mas a tudo que possa conduzir o intérprete ou o aluno a uma movimentação corporal peculiar, autônoma e criativa.)
Gigliola Mendes (Dili)
Sapato de sapateado (Tap Dance), um dos instrumentos que utilizamos para expresar quem realmente somos.
FILOSOFANÇA E SUAS BASES TEÓRICAS...
O filósofo francês Merleau-Ponty (1908-1961), em seu livro Fenomenologia da Percepção, trouxe à Filosofia o reconhecimento da importância do corpo humano. Dessa forma, sua teoria é o ponto de partida da fundamentação do Projeto Filosofança. Sua filosofia mostra que o corpo sintetiza a ambigüidade (imanente/transcendente) do ser no mundo, porque ele é uma forma de expressão (concreta, viva), plena de intencionalidade e poder de significação (o transcendente, o que atribuímos ao vivo). Cada gesto, cada movimento produzido é pleno de sentidos, porque o gesto se apresenta diante do outro como uma pergunta e o convida a encontrar a(s) sua(s) resposta(s). Dessa forma, o corpo, além de ser o ponto de partida do movimento humano, é também o primeiro contato do ser com o mundo. Esse contato é mediado pela percepção, que é a forma pela qual acessamos a realidade e depois disso construímos as nossas significações, escolhas e história. Na dança, o corpo, que já possui potencial perceptivo, é trabalhado para se tornar ainda mais expressivo e sensível àquilo a que intencionalmente é ligado, ao que percebe, para aprofundar as concepções de mundo do ser e ampliar as possibilidades de escolha de vida, ao mesmo tempo em que se ampliam as qualidades de movimento.
Merleau-Ponty aprofunda o estudo sobre o corpo, mas, como mostra Gil (2004), a Fenomenologia considerou somente o corpo no mundo, o “corpo-próprio”, que é percebido, vivido e situado, deixando de compreender “dois elementos essenciais do próprio vivido dos bailarinos: aquilo a que estes últimos chamam a energia e o espaço-tempo do corpo” (GIL, 2004, p.56). Isso faz com que o corpo não seja considerado meramente como um “fenômeno”, que se desvela na concretude do visível, evoluindo no espaço cartesiano objetivo, mas como um corpo paradoxal,
metafenômeno, visível e virtual ao mesmo tempo, feixe de forças e transformador de espaço e de tempo, emissor de signos e transsemiótico, comportando um interior ao mesmo tempo orgânico e pronto a dissolver-se ao subir à superfície. (...) Não há portanto corpo único (como o corpo-próprio da fenomenologia), mas múltiplos corpos. O corpo do bailarino é composto de uma multiplicidade de corpos virtuais. (GIL, 2004, p. 17 e 56)
Para compreender essa multiplicidade de corpos e pensamentos, além da Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty, a filosofia de Nietzsche (1844-1900) e de Deleuze (1925-1995) também são fundamentais, porque eles abordam o devir, ou seja, o movimento, que é comum aos dois objetos do projeto: à Dança e à Filosofia. A Filosofia é viva, tem sempre um indeterminado, algo a ser construído – Deleuze a define como uma constante criação de conceitos – por isso a relação dessa disciplina com a Dança, principalmente com a dança contemporânea, é inegável. Nietzsche aborda o ser em constante movimento porque o incentiva à busca de si mesmo, à superação de todos os seus limites, à transvalorização de todos os valores que lhe apequenam e inibem o seu potencial criativo, para que ele surja como super-homem. Algo que não é estático, mas dinâmico e tão intenso que pode tornar o homem eterno, ou seja, pertencente ao eterno retorno, em que tudo que é realmente verdadeiro tende a retornar e a sempre fazer sentido no mundo. Um de seus aforismos mais difundidos é: “ouse tornar-se o que você é”. Dessa forma, ele caracteriza todo o sofrimento humano como potência ou vontade de potência, incentivando o homem a viver criativamente, ou seja, sendo capaz de se recriar a cada dia, buscando o melhor de si a partir das dificuldades e angústias existenciais. Segundo Mage (2001), dissertando sobre Nietzsche, “devemos enfrentar as verdades mais difíceis e desagradáveis sobre nós mesmos sem hesitação, seguir olhando-as diretamente nos olhos, e viver à luz desse conhecimento sem nenhuma outra recompensa além de viver tal vida por ela mesma.” (MAGE, 2001, p.178)
As concepções filosóficas nietzscheanas potencializam as atividades e buscas dos jovens do Filosofança, que têm sua autoestima muito afetada pelos percalços da vida pobre na periferia e ajudam-lhes a desenvolver persistência para pesquisar e construir a autonomia corporal, intelectual e moral. Nietzsche é um filósofo fundamental nesse processo, porque seu pensamento auxilia o aluno a ser um investigador que ousa superar-se e que não desiste de se encontrar com o mais autêntico do seu ser.
A pesquisa do projeto exige uma conceituação ampla e aprofundada sobre o corpo, que não se distingue do pensamento e da vivência no mundo. Segundo Gil (2005), grande estudioso de Deleuze,
A consciência dos movimentos transformou-se por seu turno em movimento da consciência, de tal modo que deixa de haver hiato entre o pensamento e o corpo. O pensamento já não se descreve como pensamento do corpo, mas como corpo de pensamento, quer dizer, tendo a mesma plasticidade, fluência e consistência que os movimentos corporais. (Gil, 2004, p.43)
Porque o corpo, para possuir uma autonomia de movimento, precisa estar consciente de si e, ao mesmo tempo, de expandir essa consciência e percepção a tudo mais, como à relação entre o interior e o exterior; à alteridade; à relação com a cultura e com a natureza, por ser parte delas e ao mesmo tempo um ser que as modifica intencional e criativamente; às significações construídas e reconstruídas através de todas essas relações. Esse corpo vive e pensa o mundo simultaneamente, ele é múltiplo e também lida com a multiplicidade existente.
Por esses motivos, a educação corporal deve ser adotada na escola formal da atualidade ( uma busca do Filosofança), que, como mostra Isabel Marques (2007), ainda “está fundada em valores que há séculos têm valorizado o conhecimento analítico, descriativo e linear, em detrimento do conhecimento sintético, sistêmico, corporal, intuitivo.” (MARQUES, 2007, p. 18). Segundo Marques:
Uma das grandes contribuições da dança para a educação do ser humano é educar corpos que sejam capazes de criar pensando e re-significar o mundo em forma de arte. (...) A dança, portanto, como uma das vias de educação do corpo criador e crítico, torna-se praticamente indispensável para vivermos presentes, críticos e participantes na sociedade atual. (MARQUES, 2007, p. 26)
Gigliola Mendes (Dili)
Apresentação na Semana do Sapateado de Uberlândia, promovida pelo Uai Q Dança (2008)
A dança como meio transformador e formador do ser, deve ser levada a todas as pessoas. A busca pela autonomia é uma das tarefas mais árduas e ao mesmo tempo mais prazerosa. Transformar e outro e o meio tem que ser tarefa de todos e não apenas de uma pequena minoria, o que infelizmente acontece nos dias de hoje.
ResponderExcluirA descoberta de novos movimentos e de novas possibilidades abrem caminhos na luta contra a mediocridade. Mediocridade que nos é imposta desde quando nascemos, que nos faz repetir movimentos, repetir histórias. Descobrir novas linguagens, conhecer novos caminhos, trilhar novas histórias. Isso nos torna capazes de realmente tomar as rédeas da nossa vida e capazes de desenvolver um senso crítico de tudo aquilo que nós fazemos. Senso crítico coberto de argumentos que refletem o porque de nós escolhermos um determinado movimento e não outro, uma dança e não outra; senso crítico que nos leva a tomar decisões com fundamentos firmados em bases sólidas de pesquisa e busca pelo conhecimento.
ResponderExcluirAutonomia!!! Maturidade!!! Responsabilidade!!! Ter escolhas e escolher!!! Ser por inteiro!
ResponderExcluirfico me perguntando.. quem é esse ser que posta como Projeto Filosofança????? =\
ResponderExcluirO ser que posta como Projeto Filosofança é a Dili, sua mãe. kkkkk
ResponderExcluirkkkkkk
ResponderExcluirfica mais bonitinho se vc postar por fora e por seu nome não acha????
o que seria o ser por inteiro??
ResponderExcluirsomos influenciados a cada milessimo de segundo até com o ar que respiramos, será que podemos SER por inteiro se somos modificados a todo o tempo e temos inúmeras possibilidade do vir a ser? Acredito que um pouquinho de falta de maturidade é essencial para o processo criado e inovador.. A dança, ao meu ver, não precisa ser estremamente metódica a ponto de ter um significado racional e bases solidas de pesquisa, ela se fundamenta em si própria. Sim o conhecimento e a pesquisa são de grande valia, mais vale mais o SEU sentimento em relação ao movimento desenvolvido e escolhido do que sua base epistemologica sobre a mesma.