Um monstro?
Ontem conheci o meu Dragão. O seu nome é Desamor. Descobri que ele habita o mais íntimo da minha alma e que está tão enraizado dentro de mim, que não consigo me livrar dele. O jeito foi aprender a conviver com sua presença, por muitas vezes desagradável, mas logo fui me acostumando.
Um dia, enquanto passeava pelas ruas da cidade, algo me chamou a atenção... Era enorme e sombrio e sua cor era a cor da minha alma. Eu não sabia se conseguiria suportar aquilo dentro de mim, acusando-me das coisas, como se fosse um algoz sem piedade, perturbador. Eu senti que ele poderia me destruir. Tentei ignorá-lo, fingir que não habitava em mim, porém, quando menos esperei, ele ressurgiu e mostrou uma de suas faces mais horríveis: a crueldade.
Foi naquele dia, enquanto eu passeava pelas ruas da cidade, que eu percebi que todas as pessoas estão acorrentadas a seus dragões. E isso despertou ainda mais a minha atenção, pois esses dragões vivem na parte mais escura e profunda de nosso ser. Essa morada é como uma caverna escura, úmida e fria, onde ele se alimenta de todos os nossos medos e inseguranças, se tornando cada vez mais forte para, no momento certo, devorar o seu dono. Não devia me acostumar com tal besta, e sim enfrentar a face do meu inimigo mais intimo. Então me perguntei: como vencer o meu próprio dragão? Como vencer suas armadilhas? Como realmente retira-lo do meu ser?
Sinto-me fraca, sem forças para lutar. Arrasto-me pelas ruas -completa desolação - pois sei que ele é mais forte do que eu e que precisarei ser mais forte, para não cair nesse profundo calabouço, onde esse dragão insiste em me manter refém. Mas de repente percebo que, sendo leal comigo, não desanimando, tendo coragem de lutar, respeitando a mim e aos outros, talvez possa me livrar dele. Mas isso certamente não será fácil...
Depois de tanto pensar em como resolver essa questão, criei coragem, vesti minha melhor armadura e fui encará-lo frente a frente. Em meus pensamentos imaginava-o um ser monstruoso: dez cabeças, duas caldas longas e espinhosas, asas enormes, muitos olhos vermelhos como sangue e cinco cabeças cuspindo fogo em qualquer um que fosse enfrentá-lo. Tive muito medo e senti que sozinha não conseguiria enfrentá-lo. Por um momento recuei...
Logo depois, entretanto, descobri que precisava de ajuda. Foi quando resolvi reunir meus melhores aliados: a confiança, com todo seu poder de acreditar em si mesma; a piedade, com toda sua vontade de ajudar; a humildade, que me ajudou a reconhecer que cada um tem seus potencias e seus defeitos, mas que não existe ninguém auto-suficiente, porque sempre precisamos de alguém para nos tornar mais fortes; a inteligência, que me ajudou a criar estratégias de combate; a união, que me ajudou a organizar meus aliados, tornando-nos um grupo; o respeito, que nos ajudou a ver e nos colocar no lugar do outro; a felicidade, que encheu o lugar com toda a sua magia; a simplicidade, que nos ajudou a perceber que devemos nos surpreender mais com as coisas e nos mostrou como não sermos tão fechados e previsíveis; a criatividade, que veio toda desvairada com mil idéias diferentes de combate e, a coragem, que, unida à confiança, nos deu um empurrãozinho para enfrentarmos nosso temido inimigo, pois nos convenceu que poderíamos derrotá-lo.
Enfim, meu exército estava reunido. Eu à frente, a coragem e a confiança ao meu lado, a humildade, a piedade, o respeito e a simplicidade atrás de nós, a criatividade, a união e a inteligência com o nosso contra-ataque e a tímida felicidade ao fundo, deixando o ambiente leve, auxiliando-nos a mostrar o nosso melhor. Mas ainda faltava algo para completar o exército...
Eram eles, os meus semelhantes, pessoas que também estavam acorrentadas a seus dragões. Dragões que cada vez mais as levavam para a escuridão do desânimo, para a amargura e a tristeza. Convidei-os para me seguir, ensinei-os a preparar suas armas, a acreditarem em si mesmos e, juntos, formulamos estratégias coletivas aguardando o momento certo para atacar.
Com isso, descobri que, para vencer meu dragão, não basta meu esforço solitário, porque os dragões dos outros também me afetam. Não basta que eu me volte ao meu "eu" mais profundo e desvende meus próprios desejos e vontades. É preciso também ajudar os meus semelhantes. Somente assim a guerra pode enfim acabar. Mas como fazer tal proeza? Como conseguir ajudar meus semelhantes que, muitas vezes tão habituados a seus dragões, nem se dão conta que precisam de ajuda? Não tenho resposta!
O dragão não afeta só a mim, mas a todas as outras pessoas que estão ao meu redor. Dessa forma, procurei descobrir como me ajudar, porque, com isso, quem sabe, conseguiria ajudar essas pessoas a também se libertar. Poderia oferecer-lhes o meu amor, a minha compreensão, o meu afeto; embora isso não bastasse para acalmar as suas feras. Cada pessoa também precisaria se ajudar, conseguir sentir a si mesma, conhecer o amor próprio e, quiçá, o amor incondicional.
Amor (risos)... Amor? Aquele que, às vezes, pode afogar o meu eu? Esse afogamento, no entanto, pode ser evitado. Basta que eu me encontre também com a dor. Havia me esquecido dela. Sinto a dor, porque ela pode me curar desse fugitivo amor. Ele, excessivo, também se torna uma falácia. Mas quem disse que o amor é ele? Pode ser ela ou qualquer um: indivisível, hipócrita, estúpido, cretino, assassino...
Então o que faço para me sentir mais profunda e intensamente? Descobri que isso é possível se eu, ao invés de querer eliminar o meu dragão, conseguir me transformar nele. Mas para isso não há regras, porque o monstro é uma imitação do ser humano; existe no e pelo jogo dos extremos. Então, se eu for ser humano o bastante, desacredito naquilo que estou falando, que estão falando, que podem falar... E então, nesse momento, sou o próprio DRAGÃO!
(COLETIVO FILOSOFANÇA)